terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vontade de Patrimônio

  No final do ano de 2008, próximo as festividades de Natal e Ano-Novo, mais uma construção foi derrubada em Blumenau. No inicio da Alameda Rio Branco, uma região nobre da cidade, um casarão abandonado, que na minha lembrança mais remota havia abrigado uma pizzaria, foi demolido por ordem judicial com a alegação de oferecer perigo aos transeuntes e mendigos que ali ficavam (1). O ponto também havia se tornado local de consumo de drogas e estava abandonado há vários anos. O prédio estava, por iniciativa do poder público municipal, em processo de tombamento quando foi demolido. Seria salvaguardado como patrimônio edificado histórico e novamente resignificado. Convém destacar que os donos do imóvel não tinham interesse em reforma e, possivelmente nem no tombamento.
  É compreensível, que por tudo que nossa cidade e região passaram um mês antes, em novembro de 2008, este fato tenha passado despercebido pela maioria de nós. Talvez muitos não tenham notado a falta do casarão ou o terreno limpo que lá está até hoje. O fato do cidadão comum não perceber o patrimônio, em especial o edificado, pode ser algo que de uma maneira geral, represente uma normalidade. Com salvas exceções, não temos cultivado o habito de visitar museus e praças ou valorizar casas antigas de nossa cidade. Achamos todos bonitos ou feios, mas não as contextualizamos ou nos sentimos parte destas construções.
  O historiador francês Pierre Nora (1993) nos apresentou, na segunda metade do século XX, a perspectiva dos chamados “lugares de memória” (2), que em uma análise bem simplória, podem ser considerados os espaços eleitos para rememorar fatos e pessoas. Nesta perspectiva, o casarão da Alameda era um lugar de memória, pois a pizzaria era além de um espaço onde se encontravam os amantes da boa mesa, também o lugar onde se encontravam amigos, tínhamos sociabilidades, e fundamentalmente, memórias.
  O casarão demolido era uma via para a memória. Mas para grande maioria das pessoas, possivelmente, não. Entretanto seria patrimonializado pelo poder público. Seria mais um objeto da coleção de edificações históricas do município. “Definiu-se a colecção como um conjunto de objectos expostos ao olhar. Mas ao olhar de quem?” (POMIAN, 1984, p.63). As cidades patrimonializadas são fruto de constantes investimentos das esferas públicas e privadas na memória. A memória é escolhida, e toda escolha suprime uma alternativa. É a relação memória e esquecimento.
  Neste simples exemplo da demolição do casarão abandonado da Alameda Rio Branco, podemos perceber a falta daquilo que chamo de “vontade de patrimônio”. Vontade de patrimônio é o sentimento para reconhecer que esses espaços histórico-patrimoniais blumenauenses precisam ser vistos como responsabilidade de cada um de nós. É preciso se sentir parte destes museus, arquivos, centros de memória, espaços culturais e edificações. Mas, não estou colocando a culpa desta situação só sobre nós, civis. Sei que as esferas de poder público têm responsabilidade também. Um exemplo é o caso dos próprios museus em nossa cidade. Temos atualmente mais de dez museus em Blumenau, sendo que dois serão inaugurados nos próximos dias, um público e um privado. São vários, de autarquias e secretarias diferentes e, com sérios problemas. E o pior, não há conversa entre esses museus para atuarem em conjunto na solução de seus males; atuam com gestões descentralizadas.
  Entretanto, algumas atitudes que buscam primordialmente fazer pensar e valorizar os patrimônios começam a florescer em Blumenau, reverberando a tal vontade que falo. Nesta perspectiva, podemos destacar as ações do projeto “Patrimônio em Movimento: história, memória e cidade”; as ações do Grupo de Estudos do Patrimônio Cemiterial; as ações relacionadas aos Estudos do Patrimônio Ferroviário, ligando possibilidades de cicloturismo; e, ações de educação patrimonial promovida pela Gerência de Patrimônio Histórico de Blumenau. É possível destacar outras ações, entretanto como as citadas acima, são pontuais. Algumas com promessa de continuidade.
  Para exemplificar mais a questão complexa dos patrimônios, poderia falar também dos casarios e praças abandonadas. Mas prefiro não me ater a isso, pois todos vêem. Por isso, chamo as atenções para todos nós, civis e poder público, para o primeiro passo no cultivo da vontade de patrimônio: conversar sobre o assunto. A discussão das idéias e, conseqüentemente as atitudes, salvaguardam e valorizam o patrimônio. O casarão da Alameda Rio Branco, onde era a pizzaria, carregado de histórias e memórias, ruiu porque não nos enxergávamos nele. Ele não era parte de nós. Se isso não mudar, continuaremos com o descaso com os museus, praças e casas derrubadas sorrateiramente, enfim “nossos” lugares de memória.


Notas
(1).FRESARD, Francisco. Napolitana, só na lembrança. Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 19 dez. 2008, Mercado Aberto, p. 14.
(2).“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque estas operações não são naturais” (NORA, 1993, p.13).


Referências

FRESARD, Francisco. Napolitana, só na lembrança. Jornal de Santa Catarina, Blumenau, 19 dez. 2008, Mercado Aberto, p. 14.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Historiada, PUC - SP. Nº 10, 1993.

POMIAN. K. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi – Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984. v.1, p. 51-86.

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